quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Um olhar diferente

Todo o sangue tem a sua história. Corre sem descanso no interior labiríntico do corpo e não perde o rumo nem o sentido, enrubesce de súbito o rosto e empalidece-o fugindo dele, irrompe bruscamente de um rasgão da pele, torna-se capa protectora de uma ferida, encharca campos de batalha e lugares de tortura, transforma-se em rio sobre o asfalto de uma estrada. O sangue nos guia, o sangue nos levanta, com o sangue dormimos e com o sangue despertamos, com o sangue nos perdemos e salvamos, com o sangue vivemos, com o sangue morremos. Torna-se leite e alimenta as crianças ao colo das mães, torna-se lágrima e chora sobre os assassinados, torna-se revolta e levanta um punho fechado e uma arma. O sangue serve-se dos olhos para ver, entender e julgar, serve-se das mãos para o trabalho e para o afago, serve-se dos pés para ir aonde o dever o mandou. O sangue é homem e é mulher, cobre-se de luto ou de festa, põe uma flor na cintura, e quando toma nomes que não são os seus é porque esses nomes pertencem a todos os que são do mesmo sangue. O sangue sabe muito, o sangue sabe o sangue que tem. [...] Há sangues que até quando estão frios queimam. Esses sangues são eternos como a esperança.

O sangue em Chiapas, José Saramago, no seu caderno virtual

Se me disserem que isto não é de génio pedirvos-ei, desde já, que me escrevam coisa igual sobre tema igual com filosofia e olhar iguais. Se igual for muito, peço-vos parecido. Se semelhante for abuso, rendam-se às evidências, como eu o faço. Alguns consideram José Saramago parecido com algo menor, tão-só pela atitude carregada de negritude, cheia de chamas e labaredas, como mero postulado de infâmia e deselegância. Seres menores, caros leitores, são aqueles que sentem o que ele sente, pensam como ele sente, mas não vêem o que ele vê. Seres menores, caros leitores, são todos os que, perante um professor, lhe negam os ouvidos e lhe rejeitam a boca. Seres menores, caros leitores, são todos os pseudo-intelectuais que odeiam a figura pública de Saramago e o criticam sem o ler. Não endeusemos os Homens, respeitemos-los somente. O que basicamente, pela escrita, Saramago nos obrig
a a pensar é só isto: Somos pequenos animais.

Até à próxima,
Luís Gonçalves Ferreira

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