quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Ensopado de mortos

Ingeriu uma porção mínima de veneno verde, cor-de-limão. Era fresco e desceu-lhe pela garganta abaixo, reconfortando-lhe o estômago, calando-lhe as lágrimas. Fechou os olhos. Cerrou os dentes e os punhos. Respirou fundo. Cansado daquela espera, caminhou para o piano. Avistando-o ao fim da sala, agarrou na Vodka e num copo, da edição especial de 100 anos de uma das empresas da família. Geriu o tremor das pernas e o medo de cair com duas goladas frias, cruas e nuas da sua Vodka predilecta. Melhor era impossível.
Caminhava para a morte que sempre desejou: lenta, com tempo para experimentar os últimos e derradeiros sabores e vícios da sua vida. Sentou-se ao piano ardente de febre, ergueu os suaves dedos e deu-se ao prazer. Tentou cantar, mas estava cansado demais para isso. As pautas, as claves e o tempos voavam naquele espaço, acompanhando o cheiro da lavanda e do jasmim inatos à casa que o viu nascer, crescer e morrer. Em cima daquele piano melancólico estavam os caixões da sua mágoa: fotos de família com sorrisos, medos, gritos, sofrimentos e perdas em família. Deixou-se morrer em cima das teclas multicolores.
Dinheiro, álcool, veneno, choro e música. Foram estas as cores que lhe segregaram a morte. O veneno fê-lo espumar, tremer e morrer estupidamente. Fim cruel de uma existência cruel. Deixara de ser tempo para milagres... Era hora de ser racional e enterrar o corpo, em campa rasa, normal, ordinária. Cobriram-no de flores hipócritas, cheias de oportunismo. Era um império enclausurado em sete palmos de terra.

Até à próxima,
Luís Gonçalves Ferreira

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