domingo, 29 de maio de 2011

Um beijo e uma escolha

Quem um dia nos escolheu a roupa recebeu as nossas perguntas inocentes com a carícia da sua compreensão e companhia. Não há nada mais contraditório do que crescer: estamos entre o passado e o presente, numa dualidade esquizofrénica entre tarefas de gente pequena e missões de gente grande. Os traços do rosto modificam-se, mas quem nos vê crescer (re)conhece os nossos modos, reacções e sabe o que o que os actos podem significar. Tornámo-nos "monstros" sociais, aparentemente irreconhecíveis, por fugirmos da base. Essa circunstância faz de nós produto: um substância transformada, melhorada, cheia de acessórios. As memórias fazem o resto: dão-nos razão ou esvaziam-nos dela, mas sempre comportam um ensinamento no seu substracto. 
Não me lembro de me escolherem a roupa ou de prepararem o lanche ou ainda de me beijarem de boa noite. Sei como me visto e gosto de preparar e conheço as cores que me definem. Reconheço o que gosto de lanchar e já sei quem se despede com amor genuíno (em todas as "boa noite" que o dia pode ter). Mesmo não me recordando (agora existem outras coisas a saber), sei que existe dos outros em mim do que há de mim nos outros. É uma questão de matemática: são muitos e eu sou um. Esta é, por certo, a maior lição de humildade que podemos receber.

Luís Gonçalves Ferreira

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Apetece-me Pessoa: "Quando estou só reconheço"

Quando estou só reconheço
Quando estou só reconheço
Se por momentos me esqueço
Que existo entre outros que são
Como eu sós, salvo que estão

Alheados desde o começo.
E se sinto quanto estou
Verdadeiramente só,
Sinto-me livre mas triste.
Vou livre para onde vou, 

Mas onde vou nada existe. 
Creio contudo que a vida 
Devidamente entendida
É toda assim, toda assim.
Por isso passo por mim
Como por cousa esquecida.
 Fernando Pessoa

terça-feira, 10 de maio de 2011

Morreste-me

Sentimos a partida dos que nos morrem na medida em que os amámos. Dir-se-ia que precisamos deles para respirar: não se trata de um eu que chora e de um tu que parte, mas de um de nós. O outro que morre, quando amado, morre para quem o ama e, curiosamente, nenhuma experiência da vida o torna tão intensamente presente no íntimo de quem o ama como quando morre.

Colapsa tudo por dentro. Temos o coração ferido e nas feridas toca-se devagarinho. Achamos sempre que nunca vamos conseguir suportar a saudade nem sarar o trauma. A Terra deixa de ser redonda porque o horizonte não está lá e o tapete sumiu-nos debaixo dos pés. Os que amamos são fonte de sonhos: toquem-lhes sempre.
Nesses momentos, lidamos mal com as palavras. As que vêm de fora estão, muitas vezes, gastas. À força de as termos dito e ouvido, raramente nos chegam dentro. Falam-nos mais os gestos e a presença demorada. E assim, entregues às recordações e à infinita dor da nossa perda, ouvimos subtilmente a mensagem que precisamos: “Não estás sozinho. Estou contigo”.
Em torno dos que nos morrem, há um silêncio que nos chama para mais perto da Vida. Ouvimos coisas que não sabíamos ou tínhamos esquecido. Contemplando-os, descobrimos mais lúcida e aumentada a nossa capacidade de compreensão e de perdão. Apenas os mil gestos da ternura importam afinal. E dizemos, baixinho, muito gratos: “Bem-hajas!”

A morte, não é, definitivamente, a última palavra sobre nós. É o Amor entre mundos separados. Já não fujo do sonho nem sinto receio do tempo. Já não tenho medo de dançar à chuva como se ninguém estivesse a ver. E isto só porque agora tenho as duas estrelas mais bonitas que brilham no Céu!

terça-feira, 3 de maio de 2011

Fazem os tempos em que me liguei ao Facebook, por energia pessoal, influência de outros, mas a eterna procura pessoal do que é novo. As potencialidades da nova rede social, que abarca mais de 700 milhões de utilizadores em todo o mundo, são enormes. Rede de contactos profissionais ou pessoais, plataforma de emprego e conhecimento, interacção de forma de estar, pensamento ou crenças. É uma second life da própria existência real, com os dramas, ficções e expectativas que na realidade existem. É o "livro das caras", das outras existências, e de uma segunda vida que se desenvolve. O problema acontece quando a segunda vida se confunde com a primeira e elas se condicionam mutuamente. Fazes da segunda vida uma exposição enferma e errada de ti, e crias imagens e sementes torpes da tua face presencial. A ilusão do conhecimento pessoal e do encantamento do corpo perde-se nas análises que fazes, sozinho, dos perfis, das fotos, das trocas de comentários. As pessoas dantes conheciam-se presencialmente e interagiam assim, com a vergonha e sem a máscara que o Facebook proporciona. Hoje está tudo diferente. Crias redes mentais de suposições e teias. Acreditas nelas. E dás-te respostas. Condicionas a vida natural por causa disso. Reparei que andei anos destruir uma "persona" falsa, plástica, mas construí, recentemente, por aquela vida, outro boneco, vergonhoso, para o qual ontem caiu a sabedoria dos olhos. Estou fechado no escritório, sem luz, com um temporal lá fora e outro cá dentro, no interior da minha cabeça onde está a revolta do que sinto ou do que não senti, do que não fiz ou do que fiz erradamente. A vida não é isto. A vida não é exposição. E sinto que preciso de escrever um livro, recomeçar a estudar como bom aluno que sempre fui e fazer a terapia da aprendizagem de viver sem ficções. Não posso voltar atrás. Não posso curar nada que foi feito. Não posso aprender de novo. Tentei remediar. Vou fazer de tudo nesse sentido, sem nunca jamais me esquivar a dizer o que penso, sinto e olho na cara, mesmo que com medo, mesmo que com vergonha, mas sempre sem a máscara que torna tudo mais fácil de tão difícil que é na verdade. Aos 21 anos cheguei a esta conclusão, com a ajuda de uma das melhores pessoas do mundo. Nunca é tarde. Nunca é tarde.

Luís Gonçalves Ferreira

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Heresia

A ideia de escrever um livro nunca me foi completamente distante, confesso-vos. Sempre sonhei com isso, até para completar as máximas da vida: escrever um livro, plantar uma árvore e ter um filho
A terceira máxima poderá ser a última, por certo. Sempre cresci com ideias fortes de família, sei que tenho competência para educar alguém, mas é uma variável que merece o máximo de responsabilidade. 
Plantar uma árvore é a mais fácil das máximas de vida, por certo. Basta sair de casa com essa convicção. Se chove, com ou sem pá, aqui ou ali, são meras variáveis da convicção. Estão para além dela, mas influenciam a gravação do momento no teu livro da vida. 
Escrever um livro é a máxima angular. Não sei se tenho criatividade suficiente para o fazer. Não sei se tenho genialidade suficiente para isso, mas dizem-me que sim. Verborreia dos outros? Gentileza alheia? A confiança em (certas) bocas indicam-me o contrário. Fomentei este blogue durante mais de dois anos com a vontade de publicitar a minha criatividade, talvez por falta de vivência de outras coisas... talvez por carência de reconhecimento. Já escrevi contra o amor, sobre a ressaca do amor, e depositei textos auto e hetero-críticos, da política à educação, passando pelo simples olhar social, claramente de inspiração Saramaguiana. Sempre vos disse das minhas inspirações, mas sempre questionaram, na família, se era mesmo eu quem aqui escreve ou é tudo fruto de uma cópia peculiar e cirúrgica de tudo o que vejo. A resposta é "não". É tudo meu. É tudo de dentro de mim, e depois vosso, de quem lê. Pessoa surge aqui, nesta última frase. Como o nominalismo vos surgirá depois ou a teologia da verdade. Este blogue são páginas avulsas de um livro que já existe, por certo. Suor de um rosto é o meu livro publicado, pensará quem me lê, ou penso eu que já nem me sei ler. Suor de um rosto é uma verdade, ou uma mentira contada vezes sem conta: uma ficção de mim, daquilo que quero transmitir e que um dia quis que alguém lesse. É isso, uma mentira (agora vê Gaga aqui). Provavelmente o livro também o será, mas apetece-me contar-vos essa minha mentira sem me expor na rapidez de umas linhas. Quem transmite alguma coisa aos outros é porque tem a crença que é bom saber-se disso. Existem coisas que não são expostas, pelo menos intuitivamente. Falo por mim e pelo que experimento, é certo. Mas é isso a minha mentira ou a minha verdade. A verdade para mim, uma mentira para os outros, ou simplesmente nada disto. 
Saramago, Pessoa e Gaga. É uma heresia juntar isto, pensam os intelectuais. Eu sou uma heresia. Eles são partes de mim. Como o sangue materno que me corre nas veias e hoje comemoro. Como o sangue paterno que o partilha com aquele. Ou como os amores, desamores, as auto e hetero-críticas, as ficções, as árvores, os filhos ou os livros da vida. 

Luís Gonçalves Ferreira