Quem um dia nos escolheu a roupa recebeu as nossas perguntas inocentes com a carícia da sua compreensão e companhia. Não há nada mais contraditório do que crescer: estamos entre o passado e o presente, numa dualidade esquizofrénica entre tarefas de gente pequena e missões de gente grande. Os traços do rosto modificam-se, mas quem nos vê crescer (re)conhece os nossos modos, reacções e sabe o que o que os actos podem significar. Tornámo-nos "monstros" sociais, aparentemente irreconhecíveis, por fugirmos da base. Essa circunstância faz de nós produto: um substância transformada, melhorada, cheia de acessórios. As memórias fazem o resto: dão-nos razão ou esvaziam-nos dela, mas sempre comportam um ensinamento no seu substracto.
Não me lembro de me escolherem a roupa ou de prepararem o lanche ou ainda de me beijarem de boa noite. Sei como me visto e gosto de preparar e conheço as cores que me definem. Reconheço o que gosto de lanchar e já sei quem se despede com amor genuíno (em todas as "boa noite" que o dia pode ter). Mesmo não me recordando (agora existem outras coisas a saber), sei que existe dos outros em mim do que há de mim nos outros. É uma questão de matemática: são muitos e eu sou um. Esta é, por certo, a maior lição de humildade que podemos receber.
Luís Gonçalves Ferreira
Luís Gonçalves Ferreira
Sem comentários:
Enviar um comentário