quinta-feira, 23 de junho de 2011

Menos por menos

Tem graça. A vida é uma viagem de carro sem destino. Começas por ser um choque na engrenagem no momento em que nasces, fusão química de faísca e petróleo, milagre fruto da natureza e da ciência. Deixas o motor a amornar para não o gripar na primeira década, e arrancas devagarinho, na tentativa de descobrir para onde ir. Pequenos passos de gigante. Primeira bifurcação, semáforo vermelho, verde, preparação para o infinito e muito mais além, antes que regresse o amarelo e o calor se esvaia. Pé na embraiagem e metes cuidadosamente a segunda.

As curvas dos 20, enquanto lá estás, pensa-las as mais engraçadas, as mais auspiciosas. Se fores como eu, vais-te recusar a viver a meio gás, baixas rotações, e levar contigo quem ou o que os outros querem. Conduzes em oitos a pensar no ponto de chegada, ainda agarrado à garagem de onde arrancaste, à construção a que estavas habituado, não aproveitando o pleno do sabor da viagem. Achas que já sabes tudo. Chega uma curva mais apertada e derrapas, qual louco bêbado frenético em montanha russa, numa hora qualquer da madrugada. Tentas aproveitar o que adivinhas dano com um peão, e começas a perceber tontamente que não dominas a técnica, batendo na mesma. Contra uma, duas, três paredes. As que forem necessárias para te tornares carro em segunda mão, pois assim o quiseste. Não nascemos todos com o mesmo jeito e ponto final. Foste feito para domar as contracurvas, ponto e vírgula. Intentas trocar o conforto do carro pela brisa da mota, e os teus pais não deixam. Não os percebes: parece que nunca foram carro novo saído da fornada! Travão e buzina a fundo: descobriste as convicções, tornas-te o líder da tua própria revolução. Apercebes-te que há tanto nos outros de ti como em ti dos demais e voltas a arrancar. Primeira, segunda, terceira, ronco no motor para o ajudar a desenvolver, olhar pelo canto esquerdo do retrovisor (pois é proibido olhar para trás), quarta e, logo a seguir, quinta vertiginosa. Pé na estrada e juras que não voltas mais. Asas no pedal, cabelos ao vento e coração acelerado de pardal fora da gaiola. Pelo percurso, sonhas começar a construir um castelo por entre as paisagens que vais passando, sem perceber que ainda só tens areia e sede de água. Aprendes a custo que nasceste num sistema mecânico e infernal, de ir deixando alguns pela estrada fora e dando boleia a outros, e que esses que deixaste levam sempre alguma peça da tua bagagem em troca, ao mesmo tempo que lhe retiram o espaço. Apaixonaste, marcha atrás: toca a reconstruir o arcabouço, novos sonhos, uns por cima dos outros. Não os tornas fantasmas, mas sim herança, tão concreta e definida, como outra coisa qualquer. Dás saltos de titã e limas as histórias para os netos. Começas a admitir a lógica dos quatro lugares e que ser pai tem os seus quês.

Na recta dos 30, descobres que ao castelo tens de juntar cimento e construir os alicerces com a pá e a enxada que ias pensado em coleccionar no sotão. A dizer, descobres que há magia em ti. Só que agora já te contentas com um palácio-cabana à beira mar e vais suspirando para dentro pela mota que nunca te deixaram ter. As flores com que começaste por decorar o teu jardim transformam-se em árvores. Começas-te a tornar caduco e sólido. Decides parar de olhar para os monumentos que vão passando à mercê do caminho e reconstróis os teus de pedra e cal. Aceitaste aos 20 que ser inteligente não é ser rei da tua torre, mas sim peão no campo da batalha, e deixas-te levar pelas emoções. Explodes, com paixão e fogo de alma. Há muito que os teus heróis passaram a ser os que acreditaram no que lhes pareceu correcto e remaram contra a maré. Com sorte e calo assumido, até assentas que afinal ser frágil é bom, pois o gelo só é acessível nos pólos. E sorris por te sentires iluminado e redescobrires a verdadeira essência do saber ser.

O resto não sei, mas adivinho. Não é que tenha uma alma velha, nem nada parecido, mas assumo-me observadora por natureza. Acho que acabamos por nos deixar levar docemente ao sabor do vento dos que amamos, pois só assim é que vivemos para sempre; acalma-se a máquina, outrora fera e topo de gama, em ponto-morto. Permites o descanso dos potentes cavalos em pacatos regatos e verdejantes campos, entretanto dourados pelo tempo. Percebes que o tanto quanto querias fazer enquanto podias afinal foi feito porque há vida em ti. Perdeste e ganhaste: contas feitas, nem está nada mal. Ultrapassaste alguns; de resto, cedeste modestamente passagem, reduziste para quarta e meteste o pisca-pisca para a direita por outros. Ao seres pai, mãe, avô ou avó, abrandas para arrancar os próximos e ajudar a trocar os pneus rotos dos passeios. Descobres que se perde para ganhar, pois menos por menos dá mais, e que a vida é isto – só chegas a um destino quando sabes para onde vais. Na quietude da meta, ancião calhambeque, já te permitem olhar para trás, e ouves ao longe, vindos do horizonte e do nada, os aplausos da dignidade. Agradeces baixinho teres permitido que te desarrumassem o passado, olhas para as estrelas que nunca de lá saíram, atiras um “até já”, rodas a chave, e descansas em paz.

Quanto a mim… Que dizer? O que mais gosto continua a ser cantar, cozinhar e conduzir. Vamos correr? A sucata fica do outro lado do Mundo!

4 comentários:

Anónimo disse...

No words!

Luís Gonçalves Ferreira disse...

E eu não te consigo dizer mais do que isto: espero ler-te o resto do texto, porque o futuro nunca se adivinha e só se supõe. Pessoas como nós vivem na necessidade da metade certeza e da contra-parte da incógnita. O incerto para sonhar e o certo para sorrir. Isto é uma obra de arte, completamente. E emocionaste-me.

Anónimo disse...

Rapariga, tu és um génio! O JUP vai fazer a melhor aquisição de sempre.
Vais longe nisto.

Beijinho, Hugo

laura disse...

"A arte é a auto-expressão lutando para ser absoluta."

Fernando Pessoa

Bjinho, Laura


26 de Junho de 2011