Mais um Domingo, caro amigo. Vulgar e efémero, por sinonímia com tantos outros que já passaram, com o seu sabor azedo de desgosto, por adivinhar-se o início de mais outra semana rotineira e a volta à mecânica e enferrujada ampulheta. Neste melhor começo para o fim do dia, a aurora deseja ser madrugada no meu jardim, e embala-me os mesmos pensamentos de sempre.
Não é, por certo, carência, nem tão pouco obstinação, mas penso demais, e como boa conversadora que julgo ser, faço-o em voz alta. Vou esvaziando a mente como posso. Ao menos, aqui, ninguém me interrompe. Hoje em dia, perdemos tão pouco tempo a escutar os outros, não é verdade?
Aborrecida com o percurso normal dos dias, e como dada que sou a escapismos, decidi alterar a realidade. Para ser original, mandei pintar o céu em tons de azul celeste. Azul já ele é, e continuei inconformada. Tentei plantar as árvores ao contrário, e não deram frutos. Fiz por tornar este Mundo melhor, mas ele simplesmente não quis ser mudado. Meu amigo, sabemos os dois que há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, as que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os mesmos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia; e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós próprios.
Desconfia e bem que sou uma mulher de paixões. Não só carnais, nem muito menos, qual fera ferida, afirmo que sejam passageiras e insignificantes. Refiro-me também às singelas coisas desta pequena grande escola que é a vida. Admiro a simplicidade e a inteligência, como sabe. Devoro livros e perco uma imensidão de precioso tempo – se considerarmos tal facto uma perda qualitativa – a arrumá-los paulatinamente, com ordem e zelo, como uma mãe penteia um filho antes do primeiro dia de aulas. É o único espaço no qual prezo ser organizada; o resto, como adivinha, é selvaticamente catastrófico. Habito, de facto, no mundo da Lua. A leveza da ausência de atmosfera e som quando me abstraio em mim é réplica inócua de palco extraterrestre. Tenho uma sede infinita de aprender tudo o que a mísera pedra que calco e me desperte interesse tem para me dizer, o que faz de mim a mais perfeita imperfeição que conheço. Desta feita, sei um bocado de tudo, mas não consigo saber tanto quanto gostaria para me sentir completa e preenchida. Tenho sempre uma inconsolável sensação de estranho vazio. Não acha que o nosso cérebro deveria ser como os computadores, com a possibilidade de se acrescentar ou remover memória, conforme nos aprouver? Concordando com o que os estudiosos da matéria vão apontando, temos um sensato mecanismo no córtex cerebral, incidente na memória e já não na parte do raciocínio lógico-dedutivo-cognitivo, que apaga as consequências dos choques emocionais negativos, as recordações que não são despertadas há uma série de tempo, entre outras memórias mais vilipendiadas. Aqui a minha caixa de Pandora deveria ter vindo com garantia vitalícia, pois não estou satisfeita com o produto. E se eu não quiser esquecer? Não nasci ensinada. Ninguém o nasce. Ou, se o quiser, mas mais tarde reviver o filme para reaprender o esquecido? Não há brilho eterno numa mente sem lembranças, e as memórias que guardo com tanto afinco são o meu mais precioso bem. Lá em cima aceitarão reclamações por escrito? É que prende-se-me a língua com imensa facilidade, por mais que possa não parecer.
Continuemos para bingo. Dizem os antigos que as pessoas inteligentes têm uma fronte espaçosa. O meu avô dizia que tenho a testa de um porta-aviões, facto que o deixava visivelmente orgulhoso. Até me limitava os penteados para me exibir aos amigos como um troféu. Na terceira idade vou competir com os netos que tiver, é genético. Isso, a forma como toco piano e a minha sensibilidade para com os animais eram o ponto fraco dele. Hoje em dia admito somente que aprendo tecnicismos e questões práticas com uma certa facilidade, mas nas questões emocionais sou como um passarinho a quem lhe furaram macabramente os ouvidos. Rodopiam assustados, batendo com as asas até morrer, como borboletas, para nunca mais piar. Tenha a intelectualidade mal dispersa e de bateria comprada nos chineses. Já para não falar na minha limitada memória – considero-a o meu maior obstáculo. Tenho um software demasiado avantgard para o hardware de fabrico. Talvez seja por isso que perdoe com uma facilidade inigualável e tenha um orgulho ridículo e medíocre. Acredito que seja por isso. Apesar de ser uma semente que nasce connosco, a bondade não se cultiva.
Tropeçando uma vez mais nestes meus típicos e conhecidos deambulares, na mitologia e pax romana existia o deus Janus, tipificado por duas cabeças opostas entre si, que simbolizavam a dualidade humana – o bom e o mau que há por aí, o ying e o yang dos Homens. A devoção ensina-nos tudo o que sabemos, e, com ela, aprendemos a aceitar o lado menos humano nos que amamos, e a viver com e para isso. O mais difícil na vida é saber confiar, ter fé e perdoar. As pessoas que mais gostei até hoje foram as que mais me desiludiram, da mesma forma que se diz que o amor está no horizonte do ódio. Há escalas para tudo. Até os sentimentos já estão taxados e preconceituados. Cansativo, não acha? Vai-se a magia toda. Pestinhas com raça, nós os dois.
Não é, por certo, carência, nem tão pouco obstinação, mas penso demais, e como boa conversadora que julgo ser, faço-o em voz alta. Vou esvaziando a mente como posso. Ao menos, aqui, ninguém me interrompe. Hoje em dia, perdemos tão pouco tempo a escutar os outros, não é verdade?
Aborrecida com o percurso normal dos dias, e como dada que sou a escapismos, decidi alterar a realidade. Para ser original, mandei pintar o céu em tons de azul celeste. Azul já ele é, e continuei inconformada. Tentei plantar as árvores ao contrário, e não deram frutos. Fiz por tornar este Mundo melhor, mas ele simplesmente não quis ser mudado. Meu amigo, sabemos os dois que há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, as que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os mesmos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia; e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós próprios.
Desconfia e bem que sou uma mulher de paixões. Não só carnais, nem muito menos, qual fera ferida, afirmo que sejam passageiras e insignificantes. Refiro-me também às singelas coisas desta pequena grande escola que é a vida. Admiro a simplicidade e a inteligência, como sabe. Devoro livros e perco uma imensidão de precioso tempo – se considerarmos tal facto uma perda qualitativa – a arrumá-los paulatinamente, com ordem e zelo, como uma mãe penteia um filho antes do primeiro dia de aulas. É o único espaço no qual prezo ser organizada; o resto, como adivinha, é selvaticamente catastrófico. Habito, de facto, no mundo da Lua. A leveza da ausência de atmosfera e som quando me abstraio em mim é réplica inócua de palco extraterrestre. Tenho uma sede infinita de aprender tudo o que a mísera pedra que calco e me desperte interesse tem para me dizer, o que faz de mim a mais perfeita imperfeição que conheço. Desta feita, sei um bocado de tudo, mas não consigo saber tanto quanto gostaria para me sentir completa e preenchida. Tenho sempre uma inconsolável sensação de estranho vazio. Não acha que o nosso cérebro deveria ser como os computadores, com a possibilidade de se acrescentar ou remover memória, conforme nos aprouver? Concordando com o que os estudiosos da matéria vão apontando, temos um sensato mecanismo no córtex cerebral, incidente na memória e já não na parte do raciocínio lógico-dedutivo-cognitivo, que apaga as consequências dos choques emocionais negativos, as recordações que não são despertadas há uma série de tempo, entre outras memórias mais vilipendiadas. Aqui a minha caixa de Pandora deveria ter vindo com garantia vitalícia, pois não estou satisfeita com o produto. E se eu não quiser esquecer? Não nasci ensinada. Ninguém o nasce. Ou, se o quiser, mas mais tarde reviver o filme para reaprender o esquecido? Não há brilho eterno numa mente sem lembranças, e as memórias que guardo com tanto afinco são o meu mais precioso bem. Lá em cima aceitarão reclamações por escrito? É que prende-se-me a língua com imensa facilidade, por mais que possa não parecer.
Continuemos para bingo. Dizem os antigos que as pessoas inteligentes têm uma fronte espaçosa. O meu avô dizia que tenho a testa de um porta-aviões, facto que o deixava visivelmente orgulhoso. Até me limitava os penteados para me exibir aos amigos como um troféu. Na terceira idade vou competir com os netos que tiver, é genético. Isso, a forma como toco piano e a minha sensibilidade para com os animais eram o ponto fraco dele. Hoje em dia admito somente que aprendo tecnicismos e questões práticas com uma certa facilidade, mas nas questões emocionais sou como um passarinho a quem lhe furaram macabramente os ouvidos. Rodopiam assustados, batendo com as asas até morrer, como borboletas, para nunca mais piar. Tenha a intelectualidade mal dispersa e de bateria comprada nos chineses. Já para não falar na minha limitada memória – considero-a o meu maior obstáculo. Tenho um software demasiado avantgard para o hardware de fabrico. Talvez seja por isso que perdoe com uma facilidade inigualável e tenha um orgulho ridículo e medíocre. Acredito que seja por isso. Apesar de ser uma semente que nasce connosco, a bondade não se cultiva.
Tropeçando uma vez mais nestes meus típicos e conhecidos deambulares, na mitologia e pax romana existia o deus Janus, tipificado por duas cabeças opostas entre si, que simbolizavam a dualidade humana – o bom e o mau que há por aí, o ying e o yang dos Homens. A devoção ensina-nos tudo o que sabemos, e, com ela, aprendemos a aceitar o lado menos humano nos que amamos, e a viver com e para isso. O mais difícil na vida é saber confiar, ter fé e perdoar. As pessoas que mais gostei até hoje foram as que mais me desiludiram, da mesma forma que se diz que o amor está no horizonte do ódio. Há escalas para tudo. Até os sentimentos já estão taxados e preconceituados. Cansativo, não acha? Vai-se a magia toda. Pestinhas com raça, nós os dois.
Começa a esfriar por ter caído noite cerrada nos entretantos da nossa conversa - ou meu monólogo -, e os narcisos já amuaram, sinal de que a Terra continua invejamente firme no seu eixo. Como romântica incorrigível que sou, não me vou embora sem me despedir fadadamente de si, amigo. Há coisas que ficam bem mais bonitas escritas em Inglês. Ainda bem que ao menos a saudade é portuguesa. Podíamos fingir que os aviões cá fora são estrelas cadentes. São raras as que douram o nosso caminho. Dava-me realmente jeito um desejo agora.
4 comentários:
Parabéns pelo texto. Podia enumerar alguns autores que fazem estas incursões introspectivas e intimistas com a mesmíssima mestria com que escreveste este texto. Fala do desencanto, da alegria, do desjo, do sorriso triste e do salto da esperança. Partindo dem um tema supostamente corriqueiro como o iníco de uma semana ou um dia de domingo, todo o texto se embeleza de interiores retratos expressos em belas palavras.
Parabéns de novo :)
voltas-me a dizer q n és um "pequeno" (c 2 metros) milagre do santisimo e vamos ter problemas gravissimos. :)
Mary
Daniel, um muitíssimo obrigada pelo simpático elogio. É muito gentil da tua parte! Volta mais vezes.
Mary, para uma pessoa tão inteligente, és muito boa a ser chatinha :D *
PS - e eu não sou alta, tu é que és pequena - de corpo, mas muito maior do que eu de espírito! :)
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