domingo, 2 de janeiro de 2011

Grito no confessionário

Sempre me habituei a ler os olhares. Ainda era eu de tenra idade quando li algures que Vergílio Ferreira, então professor de liceu, parou o seu deambular por entre as filas de carteiras, e pronunciou com voz de oráculo (o tipo de voz com que eu imagino sempre profetizações à Nostradamus, um misto de gravidade e razão), a definição que ainda hoje me serve: «A inteligência é algo que se vê nos olhos». Meu amigo, com o tempo fui aprendendo o que os olhos podem dizer. Originou-me sempre uma premonição de traços de personalidade de acordo com a cor dos olhos, embora a paleta seja necessariamente reduzida.
Sempre me impressionou aquele determinismo, em que as leis de Mendel se assemelhavam a horóscopos: olhos azuis são ciúme, olhos verdes são traição, e “Teus olhos castanhos/De encantos tamanhos/São pecados meus.”. Mais tarde compreendi que nem sempre os castanhos são leais, da mesma forma que a conjunção de Vénus com outro astro mais atrevido não é pronúncio garantido de sorte aos amores.
Ora acontece que as pessoas não falam, ou pouco falam, do que realmente são, ou têm por dentro muito mais do que revelam por palavras. Sobressai-lhes, sobejamente, o produto que fabricam. Ignoram que vestem os olhos, e pelo traje sabemos quem são e para onde vão. Temo até ser extremista no que vou afirmar - a frontalidade, em mim, chega a ser defeito -, mas é certo ficar repugnada com quem só olha para o que a capa, que protege o íntimo, vai deixando passar. Há quem perca mais tempo a adorná-la, de encandeantes ornatos, do que a trabalhar-se por dentro, o que pode querer reflectir tudo ou, ipso facto, nada sobre a pessoa. Mas isto sou eu; ainda bem que não andamos todos à procura do mesmo.
Reparemos à nossa volta. Sim, deixemos o reflexo do espelho. Temos os miúdos que têm um olhar de Primavera, risonho, com brilho e cheiro a carro novo, retrato da infância como ela deve ser vivida: despreocupada, cheirando a sabonete de lavanda, macia como toalha, graça inesperada que provoca cristalina gargalhada. Se a vida assim deixar, recuperamos essa virgindade no olhar quando somos velhinhos. Os olhos dos velhos retomam o aspecto que tinham em crianças, talvez porque já não precisam de fingir, ou porque choraram o que tinham a chorar e acham que já chega. Guardo com adoração o olhar dos meus avós e do meu irmão: são-me uma fonte inesgotável de harmonia. Depois, há os que têm um olhar tão turvo e lânguido que nos fazem tremer a pensar no que vão ser quando se tornarem adultos. Tenho um medo incontrolável de crianças com tal retrato e de nipónicos. Não consigo contemplar o motivo, por mais que o tente. Há fobias ridículas, tenho essa noção.
Nos olhos vê-se também a bondade, que é a mais importante das qualidades humanas. Fique sabendo que há olhos como lâmpadas de voltagem diversa, de luz amarela ou branca, como o calor que transmitem. Há olhares que nos aconchegam, outros causam o desconforto da fome e do frio, ou de um país onde não pertencemos e onde se fala uma língua áspera que nos intimida. Há olhos pelos quais daríamos a alma, com o coração lá acorrentado, só para os voltarmos a ver iluminados por nós. Sentimos que mal nos conseguem olhar, mas de cada vez que o fazem, sabem que iremos conseguir chegar algures, longe daqui. Podem dizer mais do que mil palavras, e beijar como se tivessem boca, mas não conseguem fazer o tempo voltar atrás. E, comandos da emoção à razão, caem as lágrimas, como nascentes de um rio seco que teima em não morrer.
Decifro olhares como a cigana o futuro na palma da mão, e interpreto sonhos como se não houvesse amanhã. A intimidade, como sabe, é restrita no espaço e no tempo. É segredo de orelha a orelha. É reduzir o mundo a um cubículo ou menos que isso, e a um segundo, que partilhar é difícil. Mostrar o peito, gritar no confessionário, ser louco a valer de fato e camisa. Desculpe maçá-lo, mas sabe como é, todos tomamos como importantes o nada dos nossos dias. Não é lógico nem razoável, um tão-pouco dramático, mas podia-me dar para pior!

3 comentários:

Luís Gonçalves Ferreira disse...

E há pessoas neste jardim, como quem planta sonhos em vazos, que nos fazem aprender a retirar a capa e mostrar o olhar da alma. Dizem os mais sábios que os olhos são o espelho do mais privado íntimo do homem. E é verdade. E tu, Nádia, com a substacial magia que te é (re)conhecida fazes liberdade o tempo - o dos homens - nas horas dos corpos. Agradeço, todos os dias, os meus olhos - os da alma - um dia terem depositado em ti o sonho e visto a grandeza da pessoa que se lhes apresentava na fronte. Espero, sinceramente, que estes olhos - os da alma, sem a capa - continuem a guiar-te os passos. E a reconhecer-te os laços. E tu inspiras-me.

Beijinho!

Anónimo disse...

Faço minhas as palavras do Luís Gonçalves Ferreira. Fazes magia em tudo o que tocas e transpiras força!

Um bom ano para ti!
Beijo,
João (Rx)

Anónimo disse...

Uff. Brigada a ambos!
Kiss. Nádia