Acordo, tarde e a más horas, neste Domingo de eleições. Ligo a televisão, sento-me no sofá e analiso a batalha campal que se vai passando lá fora. O robe vermelho e o pijama enfiado nas meias é claro sinal que não estou nada inclinada a ir exercer o meu direito democrático, que tanto custou aos nossos heróicos antepassados, tal-qualmente abrilhanta a nossa biografia estadual. Há pessoas que ficam na história da história da gente, não é? A ver vamos.
Antes de tudo, no telejornal da uma, um gigantesco boicote às urnas, sinal do descontentamento nacional. Nas entrevistas entre as gentes e os jornalistas tive a sorte de assistir a um irónico episódio: um rapaz da minha freguesia, sustentado economicamente pela boa vontade do nosso Primeiro e respectivos contribuintes, nunca trabalhou, tão pouco estudou, muito menos contribuiu, e estava descontente com um assunto que é da competência do município (que funciona, note-se, longe das fronteiras de ética e transparência necessárias para a exocitose da autarquia) - e, por isso, fechou os portões da escolinha da terreola para limitar o livre arbítrio dos seus conterrâneos. Não me vou alongar nem tecer comentários relativamente ao boicote às eleições presidenciais, pois também me encontro frívola e in media res neste assunto, como o bom navegador que baixou os braços perante um cabo das Tormentas.
Estou é deveras chocada - assumo - com outra querela. Foi erigida uma associação de apoio a Renato Seabra, o célebre homicida do cronista Carlos Castro. Contam realizar peditórios, assistência judiciária gratuita, entre outros caridosos feitos, dignos de um autêntico mártir da democracia. Existem, caros leitores, duas formas de se eleger um Papa. A primeira, conhecida por todos, é levada a cabo pelos votos dos cardeais nos quatro Il Favoritti, com o já sabido fumo branco ou cinzento, consoante os sacros resultados da votação no interior da sagrada Capela Sistina. Contudo, os cristãos cá fora têm o trunfo na manga e levam o testemunho na mão. O protesto do povo declina a escolha. O louvor da população é outra forma consentida pela Respublica Christiana para a selecção do seu novo representante. Se tal acontecer, o escolhido de Deus para espalhar a sua mensagem divina na Terra, até na fortaleza dos formalismos e circunstâncias que é a Santa Sé, passa a ser o preferido de quem não está tão apto a discernir o que é saber administrar um núcleo. A União faz a força, e o voto de um cidadão informado vale tanto como o do analfabeto. É a matemática dos Titãs: aprende-se na escola e é imanente a qualquer ser racional. O correr dos tempos é feito pelos momentos de ruptura e continuidade, frutos da unidade e complacência social, política e cultural, pulsações que bombeiam os mecanismos do relógio da Estória.
Estamos de volta ao tempo das bruxas queimadas vivas e empalamentos públicos e não sabia. Em pleno século XXI, o homofobismo, contra todas as expectativas, atingiu o seu auge, e montam-se circos de apoio a assassinos, quiçá psicopatas, sem dó nem piedade. Cresci num país em que a diferença, quer negativa ou positiva, é fonte de escárnio, maldizer e desumanidade, e quem quer que tenha um Dó a mais na sua viola, ao invés da merecida homenagem e normal reconhecimento, tem até que vergonhosamente recusar a nacionalidade portuguesa. Vejo os nossos maxime a fugir para outros bandas, saio à rua e não deixo de reparar na intempérie, também curiosidade, das pessoas que nunca souberam o que é ir mais além, por não terem coragem e amor-próprio para tal. Excluo, como é óbvio, motivos de saúde ou a tal equiparados. Não me venham com desculpas de dificuldades económicas: há muitas formas de virar o disco sem tocar o mesmo. Aos quinze anos, perante a recusa da minha família na compra de umas sapatilhas para mim, tiveram o azar de afirmar, na brincadeira, "vai mas'é trabalhar", e eu, filha pródiga e bem mandada ao primeiro comando, fui. Foi a revolução e o humilhação no nosso seio. Ainda hoje me sinto a ovelha negra por ter batido com o pé demasiado cedo, mas nunca consegui combater este meu salero. Apesar de ser pouco contido, é das poucas coisas que mais tenho vaidade em mim. Deu-me muitas graças, por mais contraditório que isto possa parecer. Além de que é a minha melhor e mais querida herança.
Adiante, existe um conto tibetano em que estão três monges enfiados numa gruta, em plena escuridão, a meditar. Sentem uma outra nova presença entre si, e, às apalpadelas, lá conseguem avaliar o que poderia ser o novo convidado. Um deles afirma que é um lagarto por ter cabeça de réptil; o segundo reitera que é um leão pelas garras pontiagudas; e o último teima que é um peixe pelas escamas. Ciclo da vida ou não, o bicho comeu-os. Apesar de não contemplar a forma como esta história chegou aos dias de hoje, pelo genocídio de todos os intervenientes, tenho uma admiração genuína por tudo o que esteja relacionado com aqueles arredores. Não há visão mais perfeita do que o olhar, e, sem a acessória ofensa a quem não dispensa a pala de jumento, corre-se o risco de ser o próximo farnel do bicho papão se não se ousar usar a cabeça para algo mais. Deparo-me todos os dias com adolescentes que ambicionam, à força toda, ser famosos só pelo simples facto de se tornarem conhecidos. Para tal, em vez de escreverem um livro, serem caridosos, ou até se tornarem legitimamente anárquicos por um bem comum, despem-se, de roupa e preconceitos (da boca para fora), em praça pública. Há os que preferem rejubilar-se com sequelas e pequenas artimanhas de gozo para com aquilo ou aqueles que - pois, apesar de cretinos, têm noção da sua fraca auto-estima - sabem que jamais conseguirão chegar perto sequer. Se for necessário, ainda arranjam, quais velhos do Restelo, com rônha e manha, tempo e capacidade intelectual para passar as tardes e as noites a falar da unha do dedo do pé esquerdo do primo do vizinho do lado e do rato que roeu a rolha do Rei da Rússia. Nesta guerra dos sexos de que tanto se falou do século XX, os homens acabaram por se render, e também se transformaram em galinhas doidas. Talvez Chernobyl e a extinção das algas também tenha afectado a testosterona e não só a carência de iodo, essencial para a tiróide, que se faz sentir por aí. Conseguem, concerteza, visualizar mentalmente o ruminante estilo. São uma espécie de erva daninha em constante evolução.
Sou cortante, e por vezes aparento impaciência; é mais forte que eu - ainda não inventaram anti-alérgenos para a estupidez humana.
Quanto a mim, vou estudar, que isto anda complicado. Esta vida de marinheiro está a dar cabo de mim. Ninguém gosta de fazer as coisas por obrigação, e sinto-me a viver agora a minha merecida adolescência. É mainstream, é fancy, é trendy, chamemos-lhe o que nos apetecer. Todos tomamos como importantes os nadas dos nossos dias. Votar? Ora q'esta. O Cartão de Cidadão não contém o número de eleitor. Atrasos admininistrativos. E esta, hein?
1 comentário:
Para além de freira hermafrodita, és mesmo uma grande poeta e uma cidad(ona) irresponsável. Nádia Carina, diz-me que foste votar! Este texto merecia um comentário sério, mas não consigo ser sério com tanta plantação de aves raras, cenas tristes e jumentos com mantas-imperiais roubadas a elefantes.
:)
Beijoca na pernoca*
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