domingo, 6 de junho de 2010

Espartilhos, Corpetes e Crinolinas

Durante a minha vida vivi com corpetes justos, espartilhos apertados e crinolinas pesadas. Oram mudavam os formatos, ora as cores, ora as cordas: finas ou mais espessas; largas ou mais justas. Incomodativas, sempre foram, essas fartas locomotivas. É a existência numa asfixia de moldes, frutos de tempo e espaços próprios. As pessoas correm, a olhos vistos, em todas estas justuras que sufocam a beleza de se viver livremente. Não são paredes de tijolos, mas feituras humanas, medíocres, das cabeças, que viram práticas-produto. Luís XIV usava saltos altos. Confortáveis não eram por certo. Certo será que as crinolinas, os corpetes e os espartilhos, das damas da sua corte, também não o eram. 
Todos vivem (e não sou só eu) com adereços sociais inúteis, desconfortáveis, que não são de cimento, nem de barro nem de pano nem de madeira nem de arcos nem de varetas. Nem de nada que se possa descrever em linhas de homens.
As coisas que espartilham, encorpetam ou crinam a vida não são as óbvias coisas que o vosso e o meu imaginário arquitectam para esta valsa de adereços de moda. Falo, aqui, de moldes, modelos, tigeladas de barro que nos metem, desde pequenos, pelo cérebro dentro. São preconceitos, arquétipos, brocardos. São moldes. E mais moldes. E mais cimento e barro.
"Olha que ficas como o teu tio." 
"A tua irmã é mais inteligente que tu". 
"Se não fizeres isto arrependeste". 
"És um mau filho". 
"És má pessoa". 
"És mau namorado". 
"És inferior à pessoa X, mas superior a Y". 
"És". 
"És".
"X é e tu não és".
É a sobranceria do ser, pelos outros. Somos comandos, postas fixas de carne, em desejo de prazer e de felicidade, meramente sujeitas às prestações dos outros. São moldes. Como as tigelas que nos dão o caurdo da ceia. Feitas e refeitas vezes sem conta, na mesma esquemática ignorância de não se pensar que se empobrece o outro assim. Modelos. Chuvas de comparações. Premissas. Prestações. E modelos. Sempre me senti emparedado nos outros, mesmo entre pessoas que nem conheci. E isso desagrada-me. Sempre me destabilizou, mas não tinha voz para refilar nem dizer nada. Aceitei. Fui chamado de "burro". Cresci. E repulso comparações.
Repulsa. Nojo. É isso.
E cresci. E vejo o Homem como um ser, primariamente isolado, sem roupa, nem apetrecho nem ancas nem vestidos nem crinolinas nem espartilhos. Topo-lhe humanidade. Dou-lhe respeito. Não o comparo. É um ser. Precisa de crescer. É particular. Nada de paredes. Nem muros. Nem bem nem mal. Nem ocidente nem oriente. Cansei-me de formas. Fadiga egoísta. Logo depois, enformo (os outros) num bolo, fruto da observação. Não comparo nem subestimo. Conheço.
Afinal de contas, Deus criou o homem e a mulher nus e eles tocaram-se, corporalmente, e tiveram prazer. Viram o outro. Não existiam espartilhos nem corpetes nem crinolinas antes de serem verdadeiramente conhecedores de si. Era correcto o silogismo se eles não fossem logo emparedados entre as pernas do Deus do Bem e as coxas do Deus do Mal. Era lógico o pensamento até serem vestidos, de moldes, que eram folhas de preconceito. 
Modelos. 
E mais modelos. 
Paredes e muros destrutíveis.
Eu próprio sujeito-me à sujeição dos outros aos meus moldes.
Por respeito à minha história, não me comparem. Estimem o que sou e não o que querem que seja. Mimem o que está cá, se for isso que o coração pede. Deixem-me ser, livremente, sem Espartilhos, Corpetes e Crinolinas.


Sem mais,
Luís Gonçalves Ferreira

1 comentário:

Rita Martins disse...

gostei imenso do texto; os preconceitos sociais podem não ser de pedra mas são extremamente pesados, tão piores quanto a própria sociedade e a sua pressão.
Mas ainda bem que há liberdade...