sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Espelhos

Esta tarde fria de Inverno, que podia ser como outra qualquer, fez chover como se houvesse chovido desde a primeira página do Mundo. O dia, no entanto, não vai prometer mais que o próprio dia, por saber que tem decurso e fim. Seguro um Porto na mão, e a devoção na outra, enquanto vou escutando a voz do optimismo na primeira pessoa. O que ontem me ficou no ouvido pode tender a dividir a razão entre a subtil diferença entre dar uma mão ou acorrentar uma alma, ou pode ser tão-só uma singela passagem de uma vida alheia, nada tocante a sensações terceiras. A mim, o estranho seria se ao lado passasse.
“Enquanto subia a mesma rua que me levava ao trabalho, todos os mesmos dias, só conseguia pensar que a felicidade que estava a sentir era irreal”. Uma potência em espírito com esta magnitude, ao ser assim tão esguia e escorregadia, consegue, quase como por milagre divino, transportar-nos para um lugar belo, iluminado, revitalizante, onde as cores são vivazes, os cheiros frescos, os sorrisos eternos, os pés flutuam, entre uma infinidade de sentidos mais despertados. Já foi alcançada de todas as formas, feitios, recortes e moldes; não sou eu que a aqui a vou dirimir. Convido-me é a desenhá-la por um ângulo, a meu ver, deambulante e frio, como o rasto molhado que ela deixa quando se esvai. Amor que com amor se paga.
Basta-me olhar para o meu lado direito e constatar o que constatado está. Tornamo-nos tão sonhadores e contemplantes concretizados quando temos os dois pássaros na mão, que vamo-nos vaidosamente cativando a nós mesmos ao contemplá-los, sem lacrar a gaiola dourada. A ave de Minerva que ontem me foi despertada entristeceu-me, ao acordar-me da insónia que protesta por querer sorrir mais. A minha ave, mais do que coruja, é gaivota. O meu olhar penetra na escuridão dos que tudo vêem e pouco conseguem fazer com isso, e levo-o comigo com as asas do vento para longe. A estória que me despertou hoje acabou mal. Infelizmente.
Passamos metade da corrida a considerar que o que temos entre os braços não está ao nosso alcance; e a outra metade a vê-la partir. Escondemo-nos atrás do Cronos para esquecer, confiando que este seja um comboio sem volta, e que o bilhete seja só de ida, sem ingenuamente sabermos que este só leva o corpo. O resto fica preso à recordação, e vive nela como se carne se tratasse.
É atroz a falta de poder que temos sobre algo tão volátil, e o tempo encarrega-se de a tornar efémera, ao mesmo tempo que a grava em mármore branco e caro. Por não ser corpórea, não a conseguimos laçar no espaço pretendido, nem despertá-la quando necessitamos, acabando por perder quase tudo o que é vital para sobreviver; pois nesta incessante quimera não vivemos condignamente – ela limita-nos à mera e inócua sobrevivência. Se fossem visíveis na areia inexplorada, os nossos passos seriam rasos e tímidos, e rapidamente apagados pelo mar. Com o receio de se estar a provar mais do que aquilo que se pode ter, prendemo-nos os movimentos e o livre arbítrio sobre nós próprios, e permitimos que nos sugue lentamente o ânimo, a plenitude, o êxtase inicial. O imenso poço habitado pelos nossos profundos desejos, os quereres mais ambiciosos que o ouro, vão-se tornando passo a passo vago sopro do que não ousou viver, mudez do que não pôde sentir, murmúrio inútil do que não quis pensar.
E aí a felicidade vai-se. Como o vento que não quis ser soprado, como o dito que não foi dito, como o castelo de areia que não se conseguiu formar, como a história onde não se entrou, como uma carta que não foi enviada, ou como um livro que não se conseguiu acabar de ler…
O fim que visionáramos com olhos lassos volverá em adágio e desaparecerá por certo do horizonte. De tanto e tão pouco viver, só o rascunho guardamos; e de tanto olhar, tornamo-nos em outros que não somos. Fujamos de nós então.
Ou é este o espelho por onde nos queremos talhar?

6 comentários:

Tedim;) disse...

Tudo na vida tem um inicio e um fim,assim é o nosso destino.
Temos é de encarar isso como um crescer maduro do nosso ser.

*

Luís Gonçalves Ferreira disse...

O presente e o ser que não se é também és tu, inevitavelmente. Fugir de nós é deixar de ser fiel a um molde e a uma existência. Premeditada ou acaso do destino, viver é bom demais para merecer algumas destas (nossas) negritudes. Esta consciência floresce quando leio textos alheios, mas que se identificam muito comigo, como este. Hoje, querida Nádia, vales a pena, como és, mesmo que distante e mais triste. Amanhã, querida Nádia, ao acordares, serás maior, mas não necessariamente diferente de ti. O passado não se nem se revive apenas se respeita. É dele que bebemos porque é dele que somos feitos.

Sê feliz e dança porque 2010 está a chegar.

Beijoca!

Nádia Alberto disse...

Ninguém me entendeu :) Não faz mal. Gosto de vocês à mesma :D *

Luís Gonçalves Ferreira disse...

Então explica aqui ao menino, que esta cabeça percebeu mal. São os doces.

Anónimo disse...

Andaindes a ler muito Margarida Rebelo Pinto :D eu complico o descomplicado. Ela, ser muito pouco optimista (ao contrário de mim, coisa que vocês os dois deveriam saber), só vê amor e amor em tudo e tudo à volta dela.

Dra. Iluminada-com-mais-quatro-quilos-em-cima

PS - Danyzinha, esta tua recente onda de Carpe Diem mata-me o Tico e o Teco de tanto rir :D

Anónimo disse...

Luis: o fugir de nós não é deixar o molde, é voltar a ele.

"(...)e de tanto olhar, tornamo-nos em outros que não somos."

Autocitei-me :D